O Ouro do Imperador - Capítulo 4
Originalmente publicado em 2015-01-20 23:23 no blog Patinete a vela.
Este é o texto 5 de 10 da Primeira Maratona de Posts do Patinete a Vela.
Se você ainda não o fez, leia O ouro do Imperador - Capítulo 3.
O Ouro do Imperador
Capítulo 4
Onde nossos amigos mais um guia sem noção começam a sua jornada épica
Henrique acordou sobressaltado. Olhou no relógio que eram cinco e meia da manhã. O quarto anda estava escuro mas tênues feixes de luz começavam a se fazer sentir através das persianas.
Revisou sua mala, vestiu-se e desceu ao refeitório, onde Roberto e Remy já estavam conversando animadamente enquanto tomavam café da manhã. Não havia outros hóspedes no hotel, mas a senhora simpática da recepção estava tomando um café em uma mesa com um homem que devia ser seu marido. O homem sorriu para Henrique e acenou, ao que nosso protagonista retribuiu.
Quando chegou à mesa, Roberto e Remy o saudaram com alegria.
– Bom dia Henrique! Hoje é o dia!
– É mesmo, eu estou tão ansioso que consegui dormir só duas horas nesta noite.
Remy, com seu horroroso piercing de porcelana balançando sob seu nariz, puxou uma cadeira para Henrique. Quando este se sentou percebeu que havia um mapa aberto sobre a mesa e alguns panfletos publicitários do “Tour da Travessia”.
– Eu estava explicando para o Robért qual vai ser nosso roteiro – disse Remy em inglês, com um sotaque horroroso. Não adianta, homens franceses falando em inglês são pavorosos. Só o sotaque feminino se salva, como vocês bem devem se recordar da atendente da Swiss.
– Nós vamos subir de jipe até o Hospice de St Bernard, que fica no ponto mais alto da estrada. Lá nós vamos parar para uma rápida visita, então vamos deixar o jipe estacionado e vamos pegar a estrada histórica, aquela que foi usada por Napoleão e o exército da reserva quando decidiram tomar os austríacos de surpresa.
Remy fez o traçado da estrada no mapa com seu dedo.
– A estrada não é muito longa, mas o terreno é muito acidentado e por isso nós vamos avançar devagar. Vamos parar em alguns pontos para usar os detectores de metal para encontrar relíquias da época da travessia. Nunca encontrei ouro, mas às vezes dá para encontrar bugigangas que pertenceram aos soldados. Vamos precisar parar para dormir na estrada dois dias, até chegarmos na base das montanhas no lado italiano, onde vamos parar para descansar e fazer um lanche enquanto esperamos que meu sócio vá nos buscar para o caminho de volta.
– Excellent! – exclamou Roberto em inglês, mas falou baixinho em português para Henrique – Deixa comigo que vamos nos livrar desse trouxa o quanto antes.
Remy começou a depositar alguns equipamentos em cima da mesa.
– Vou apresentar para vocês os equipamentos que vou levar. Nesta época do ano a passagem é muito segura, não há que ter medo, mas para qualquer eventual emergência temos um telefone celular via satélite, um GPS, três detectores de metal portáteis, binóculos, cordas e mosquetões para montanhismo. Também trouxe três barracas individuais, alguns isqueiros e uma garrafa de querosene para ajudara a acender as fogueiras. Trouxe três kits de primeiros socorros e um pouco de comida e água, que deve ser suficiente para os dois dias que vamos passar na montanha. Por último tem esta pá dobrável que pode ser convertida em uma picareta.
Henrique estava muito empolgado. Ele nunca tinha feito uma excursão de montanhismo e estava quase esquecendo do verdadeiro propósito da presença dele e de seu amigo naquele lugar.
– Certo, então vamos lá!
Os três terminaram de tomar café e caminharam em direção ao jipe detonado de Remy. Por que eles tinham que ir de jipe até Hospice de St Bernard era um mistério, pois a estrada era tão boa que seria possível subir de patinete, se a isso alguém se propusesse. Mas Remy gostava de adicionar um pouco de teatralidade ao seu tour.
– Senhores passageiros, apertem os cintos e preparem-se para a decolagem!
O jipe vacilou durante alguns minutos até dar partida, mas finalmente pegou e em poucos minutos já haviam deixado Martigny para trás. O trajeto não seria longo, provavelmente menos que uma hora. Durante o caminho Remy aproveitou para contar um pouco sobre as guerras napoleônicas, sobre como o elemento surpresa da travessia assegurou uma posterior vitória completa em Marengo, enfim, todos os fatos que ele deve ter repetido dezenas de vezes para todo tipo de turista, isto é, assumindo que de fato turistas se interessassem por aquele tipo de passeio.
Chegaram ao Hospice St Bernard, um conjunto de construções que havia muitos séculos servia como um lugar de apoio e resgate a viajantes que atravessavam as montanhas. É deste lugar a tradição de usar cães São Bernardo para resgatar pessoas perdidas nas montanhas, como agora deve ter ficado óbvio pelo nome. Agora o Hospice funciona como hotel, de um padrão um pouco maior do que os amigos poderiam arcar, pelo menos enquanto não encontrassem as moedinhas do Imperador.
Fizeram um tour rápido pelas instalações, mas Roberto e Henrique estavam ansiosos demais para começar a jornada, o que foi percebido por Remy. Este não ficou exatamente satisfeito porque ele tinha um acordo com o dono da loja de souvenires, por isso ele sempre fazia questão de levar todos seus passageiros por um passeio bem longo pela loja, mas já viu que desses dois brazucas ele não conseguiria arrancar mais dinheiro.
– Certo, senhores, vocês podem ver uma trilha de terra batida, agora bastante coberta de vegetação, já que é tão pouco usada. Imaginem milhares de soldados passando por essa estrada, em condições climáticas bem piores do que estamos vivendo agora. Vocês já devem ter visto o quadro de Napoleão em seu majestoso cavalo branco, representando sua heróica travessia dos Alpes. Na verdade os cavalos tinham muita dificuldade em passar por essas trilhas, por isso Napoleão teve que subir montado em um burrinho. Por mais simpático que o burrinho fosse, dá para entender por que Napoleão quis ser retratado em seu corcel, não é mesmo?
Os amigos começaram a caminhar pela estrada de terra. Estava muito frio, e ambos os lados da estrada apresentavam camadas de neve. A terra estava congelada em muitos pontos, o que a tornava muito escorregadia. Mas Roberto já havia se prevenido e havia trazido dois pares de botas com travas para evitar acidentes indesejados.
O começo do trajeto foi muito agradável. Remy havia fornecido um mapa histórico da estrada, onde Henrique e Roberto puderam acompanhar seu progresso. A vista era maravilhosa, especialmente das montanhas nevadas ao fundo. Mas não era isso o que interessava aos nossos protagonistas! Eles olhavam com atenção a cada bifurcação e formação rochosa da estrada, tentando lembrar-se e encaixar o que viam com o mapa de Roberto.
De tempos em tempos eles paravam de caminhar para beber um pouco de água e descansar. Remy havia ensinado Henrique a usar o detector de metais e havia sugerido que este os usasse nos pontos de vegetação mais alta ou em fendas entre as rochas. Henrique achou agradável usar o aparelho, com seu bipe suave que aumentava sua cadência quando chegava perto de algum metal.
– Peraí, pessoal, achei, achei alguma coisa! – exclamou Henrique.
– Hahaha, seu engraçadão, você acabou de encontrar minhas chaves, agora tira esse detector de metais de cima de meu bolso.
Henrique se afastou de Roberto dando risada e continuando a brincar com o detector de metais.
Continuaram a jornada. Sem que Remy visse, Roberto comparava o caminho que faziam com o de seu mapa. Ainda estavam em um ponto no qual as duas rotas coincidiam, mas parecia faltar pouco para chegarem ao ponto em que deveriam mudar o caminho.
– Vocês conseguem acreditar que Napoleão tinha apenas trinta anos quando liderou os exércitos através dos Alpes? – contou Remy. – E ele já era Primeiro Cônsul francês, o cargo de comando mais alto que era possível exercer, isso até que alguns anos depois ele se declarou Imperador.
– É admirável mesmo – declarou Henrique.
– E nós, o que estamos fazendo com trinta anos de idade? – continuou Remy, começando a soar um pouco desanimado. – Estamos aqui, presos em uma cidadezinha miserável, onde nunca aparecem turistas, tentando convencer qualquer pessoa que nos dê um pingo de atenção a que nos dê uma chance de mostrar que nosso tour é legal, só para depois ficarmos ouvindo reclamações de que o jipe é desconfortável, que a estrada é escorregadia, que a neve é fria e molhada – Remy começou a soluçar enquanto falava estas coisas. Certamente ele era um pouco complexado e não ajudava muito ficar relembrando a história de Napoleão repetidas vezes.
– Ehm, Remy, que tal se você nos falar um pouco sobre o tesouro perdido de Napoleão?
Remy se recompôs e começou a narrar como, durante o transporte do tesouro do exército através das montanhas, a roda de uma carroça se quebrou e provocou sua queda por um desfiladeiro de cinquenta metros. Levou um dia inteiro para conseguir recuperar o tesouro, mas com a necessidade de realizar a contabilidade às pressas, não se sabe ao certo se todo o ouro foi de fato recuperado.
– Tampouco sabemos ao certo onde foi exatamente que isto aconteceu – disse Remy. – Apesar de que já houveram incontáveis expedições para encontrar qualquer coisa, vocês podem ver que a área de montanha serpenteada pela estrada é enorme, então é bem plausível que algo possa ter se perdido e que ninguém nunca vá conseguir achar.
“Pelo menos ninguém que não tenha nosso mapa”, pensou Henrique.
A estrada parecia dirigir-se diretamente para um precipicio. Quando chegaram na beirada, constataram que a estrada fazia uma curva fechada e prosseguia por algumas centenas de metros ladeada por um lado pelo cume da montanha e pelo outro por um abismo de mais de cem metros de altura.
– Recomendo que descansemos um pouco antes de continuar. – Disse Remy.
Henrique e Roberto deram boas vindas à sugestão. Descarregaram suas mochilas, sentaram-se em uma rocha e aproveitaram para beber água. Roberto viu com o canto do olho como Remy se afastou um pouco até chegar em um ponto em que supunha estar fora do alcance de visão deles. Roberto viu Remy colocando a mão no bolso e jogando algo no meio de umas pedras.
– Sempre que eu paro para descansar gosto de usar meu detector de metais – exclamou Remy em uma voz pouquíiiiiissimo suspeita, enquanto varria a área em sua volta com o aparelho. – Nunca se sabe quando se pode encontrar alguma coisa.
Enquanto dizia isso, Remy passou o detector de metais bem por cima do lugar onde Roberto o havia visto deixando cair o objeto misterioso que estava em seu bolso. O detector de metais começou a fazer um barulho característico.
– Amigos! Acho que encontrei algo! No meio destas pedras, me ajudem!
Roberto e Henrique correram em direção a Remy.
– Me ajudem a levantar esta pedra enquanto eu vejo o que tem embaixo!
Os dois amigos levantaram a pedra, enquanto Remy enfiou seu braço e voltou segurando algo.
– Vejam que sorte! Encontrei uma moeda antiga!
Mostrou a moeda rapidamente para Henrique e Roberto.
– Com certeza é um franco de cobre da era pós Revolução Francesa, de incrível valor histórico. – declarou o conhecedor Remy. – Vejam, é datada de 1797.
Henrique olhou com interesse para a moeda. Roberto estava pasmo.
– Apesar de que eu tenho paixão por colecionar objetos antigos, entendo que vocês queiram levar como lembrança, um autêntico tesouro napoleônico. Por isso eu posso vender para vocês por um preço irrisório.
– Sério mesmo? – disse Henrique empolgado – Quanto você quer por essa moeda?
– Acho que trezentos dólares é um valor bom, especialmente porque uma moeda destas facilmente pode valer mais que mil dólares para um colecionador.
– Me deixa ver essa maldita moeda – disse Roberto. – Mil setecentos e noventa e sete? Você acha que somos trouxas? Isto é um franco de cobre de Mil novecentos e noventa e sete, aqui o nove foi raspado com uma chave de fenda para parecer um sete.
– Nossa, que estranho. Como será que essa moeda veio parar aqui no meio das pedras?
Remy não se deixou abalar por ter sido pego no pulo. Agiu com a maior naturalidade e pediu sua moeda de volta para Roberto com a maior delicadeza, sem querer provocar a ira do brasileiro, e deu um sorriso amarelo cheio de dentes com uma falange de porcelana por cima.
– Se não interessa a vocês a lembrança, pelo menos para mim interessa!
Continuaram caminhando por mais algumas horas, parando ocasionalmente para tirar fotos e brincar com os detectores de metal. Quando já estava quase escurecendo, Roberto alcançou Henrique e conversou baixinho.
– Falei com o Remy, e ele não está muito a fim de nos deixar sozinhos com o equipamento dele. Ele diz que é um equipamento caro e não quer se arriscar a que quebremos ou alguma coisa.
– Você tem que convencê-lo a nos deixar sozinhos! Ou será que não poderíamos convida-lo a procurar com a gente? A experiência dele pode talvez nos ajudar.
– Nem sonhando, esse cara é uma anta. Olha só, o mapa é bem claro e até agora bateu certinho com a trilha. Acho que não vamos ter dificuldade em continuar sozinhos. Mas vou ter que conversar mais um pouco com ele, ser um pouco mais persuasivo.
Pararam para recolher alguns gravetos na beira da estrada. Armaram uma pequena fogueira, que provavelmente não conseguiriam manter acesa por muito tempo. Montaram as barracas e ficaram conversando um pouco em volta do fogo, enquanto comiam sanduíches.
A noite surgiu, límpida e estrelada. A lua cheia iluminou o cume das montanhas, espalhando um brilho lúgubre causado pelo reflexo na neve. Era possível até mesmo enxergar o vale lá embaixo.
Henrique acumulava cansaço fazia alguns dias, então despediu-se de seus amigos e foi até sua barraca dormir. Enquanto se afastava ouviu Roberto negociar com Remy em francês.
Eles estavam cada vez mais próximos, Henrique consegui ouvir o chamado do ouro. Só faltava se livrarem do guia inconveniente.
Fechou os olhos sorrindo. Esta noite ele dormiu tão profundamente que não conseguiria ser acordado nem mesmo se o exército inteiro de Napoleão passasse pelo lado de sua barraca.
…continua em: O Ouro do Imperador - Capítulo 5