O Ouro do Imperador - Capítulo 3
Originalmente publicado em 2015-01-20 01:33 no blog Patinete a vela.
Este é o texto 4 de 10 da Primeira Maratona de Posts do Patinete a Vela.
Se você ainda não o fez, leia O ouro do Imperador - Capítulo 2.
O Ouro do Imperador
Capítulo 3
Em que nossos heróis encontram alguém que irá ajuda-los em sua empreitada.
O voo da Swiss Airlines pousou em Genebra em uma manhã ensolarada e fresca. O voo de quinze horas não foi completamente desagradável, apesar de que Roberto serviu de travesseiro para um homem de grande envergadura. Dado tempo suficiente, talvez a seleção natural acabe gerando uma raça de super-seres que serão capazes de dormir sentados, enquanto são pressionados para baixo por outros seres humanos que não o conseguem, e nem consigo imaginar que características físicas tais super-seres terão. Mas no presente estágio evolutivo de Henrique e Roberto estes apenas conseguiram acordar sobressaltados repetidas vezes a cada solavanco do avião ou a cada abraço involuntário do gigante adormecido ao lado.
Mas a excitação dos dois era tal que nem isso era um problema. Já que não conseguiam dormir, passaram a maior parte do voo conversando, discutindo os planos, imaginando o que fariam com o dinheiro, insultando um ao outro por falar em voz alta sobre os planos (que deveriam ser secretos), enfim. O voo passou em um piscar de olhos e quando se deram conta o avião já estava tocando a pista de aterrissagem do Genève Aéroport, com perdão de meu francês.
O desembarque foi tranquilo, mas um prenúncio não muito positivo foi percebido por Roberto quando, depois de quase uma hora esperando, a mala que ele cuidadosamente preparara com todo tipo de equipamento útil à empreitada não apareceu na esteira de bagagem do aeroporto. De lá, foram direto ao balcão da companhia aérea onde Henrique assistiu de camarote a um grandioso e eloquente embate entre seu amigo e a funcionária que, com muita dificuldade, ainda tentava manter a compostura. A discussão era em francês, que Henrique não entendia, mas pelos gestos que a funcionária fazia enquanto falava ele suspeitava corretamente que o problema deles não seria resolvido.
Roberto virou-se bruscamente e saiu andando rápido, chamando Henrique para ir embora junto, enquanto a funcionária olhava pasma. Henrique conversou com ela em inglês, com um horrível sotaque portugófono, perguntando o que acontecera, e ela respondera, também em inglês mas com um adorável sotaque francófono, que seu amigo era um porco mal educado, que nenhuma mala fora despachada do Brasil e que a Swiss nunca perdera uma bagagem em voo internacional. Nisso Roberto, que ficara esperando que Henrique o acompanhasse, voltou correndo e o puxou pelo braço.
– Para de falar com essa bruxa e vamos embora, não acredite em nada do que ela fala.
Ao que se seguiu uma breve troca de insultos do Roberto com a funcionária, mas neste momento foi Henrique que puxou seu amigo.
– E agora, o que vamos fazer sem seu equipamento?
– Não se preocupe, isso não é nada. Quando voltarmos ao Brasil resolvemos o problema. Além disso eu tenho um plano B, deixa comigo.
– Ótimo!
– Agora temos que achar um ônibus para Martigny. Se chegarmos ainda de dia podemos aproveitar para visitar a cidade e fazer mais alguns preparativos.
Martigny é uma cidadezinha de dezessete mil habitantes onde começa a estrada que atravessa os Alpes e que termina na cidade italiana de Aosta. A famosa estrada atravessada por Napoleão e seus cinquenta mil soldados da reserva, mais de duzentos anos antes. Obviamente a estrada não era asfaltada naquela época, nem tinha lanchonetes e postos de gasolina distribuídas ao longo das partes mais baixas. A travessia teria sido muito mais fácil se houvesse estas facilidades, mas os exércitos da Grand Armé tiveram que se contentar com o apoio dos monges do Hospice de St. Bernard ao atingir o ponto mais alto da travessia, que os recebiam com queijo e conhaque.
Mas chega de divagues! Henrique e Roberto chegaram a Martigny já faz quase meia hora e nós estamos aqui, perdendo tempo com detalhes inúteis. Veja como eles caminham alegres pelas ruas limpas e desertas desta pequena cidadezinha de montanha.
– Aaah como é puro o ar dos das montanhas! Alguém deveria engarrafar e vender lá em São Paulo… – exclamou Roberto, sentindo-se vivo de verdade.
– Até que está bem fresco aqui né?
– Quando estivermos na montanha vai ser gelado, pode apostar. Olha, este deve ser o albergue, Hotel des Folles. Vamos fazer o checkin e sair para dar umas voltas.
Entraram no albergue, uma pequena casa rústica de madeira vermelha e telhado verde. Roberto estava tão exultante e alegre que conversou com a recepcionista com a familiaridade que normalmente se reserva a parentes. Henrique aproveitou para dar uma olhada nos quadros decorativos nas paredes do albergue e parou sua vista em um pequeno busto de Napoleão que estava depositado sobre a lareira. “Que estranho estarmos realmente aqui”, pensou, “passando por um lugar onde o próprio Napoleão passou”.
Seus pensamentos foram interrompidos por um chamado de Roberto.
– Ahn, Henrique, você poderia acertar o albergue? Estou sem meu cartão… Mas depois acerto tudo com você, viu? Prometo!
– Eh, tá bom, já estou acostumando.
Depois de deixarem suas malas no albergue saíram para caminhar. A cidade era uma típica cidadezinha suíça de embalagem de chocolate. Só faltavam as vaquinhas violetas e as ordenhadeiras loiras cantando “ioroleeeeiii”.
– Quero dar um pulo neste lugar, o “Museu da Travessia” – disse Roberto apontando para um pequeno mapa que pegou no albergue. – É um nome muito sugestivo.
Enquanto riam e conversavam, uma senhora idosa aproximou-se dos dois. Ela estava em um estado lastimável, com roupas velhas e cheias de remendos, arrastando uma bengala lascada. Quando se aproximou o suficiente, largou a bengala, segurou pelo colarinho a Roberto e começou a gritar alguns impropérios em francês, que prefiro não traduzir em respeito aos ouvidos delicados de meu caro leitor. Nunca diga que não me preocupo com você. Em seguida, agarrou Henrique pelo braço e continuou gritando, mas desta vez com uma voz de chorosa.
– Toma aqui e vai embora.– disse Roberto, nervoso, entregando algumas moedas para a idosa. Esta se recompôs, olhou para os amigos com desprezo, pegou sua bengala, apontou para os dois, apontou para as montanhas e falou em uma voz muito sinistra:
– Mort!
Isso tomou os amigos de surpresa, e eles ficaram parados olhando um para o outro em silêncio enquanto a velhinha se afastava.
– Que foi isso? Você entendeu alguma coisa do que ela disse? – perguntou Henrique.
– Ahn… Sei lá, essa velha é louca. Eu acho que ela estava xingando o marido, depois ela te agarrou e pediu dinheiro. Que coisa, e eu pensando que na Suíça as coisas seriam diferentes.
– E o que ela quis dizer com “mort” quando apontou para a montanha?
– Ela estava se referindo ao Mont Mort, que não recebeu esse nome por ser um lugar agradável para passar a tarde – uma voz estranha respondeu em inglês.
A voz pertencia a um rapaz magro e alto na janela de um estabelecimento comercial ao lado de onde se encontravam. O rapaz era enérgico, usava um estiloso conjunto de bigode e barba, que contrastavam com seu cabelo curto, e usava uma blusa de gola rolê preta. Como se seu nariz não fosse chamativo o suficiente, ele tinha um enorme piercing, um cilindro branco que parecia…
– É uma falange. – disse o rapaz, lendo os pensamentos de Henrique, que não conseguia parar de olhar fixamente para o adereço estético.
– Uma falange? É um osso? De um animal?
– É um osso, sim, mas não de um animal qualquer. É de um ser humano.
Ao dizer isto o rapaz mostrou sua mão direita para os dois amigos, mostrando que faltava um enorme pedaço de seu dedo indicador.
– Eu perdi este dedo escalando o Mont Mort, o mesmo lugar para onde vocês vão. Para procurar o tesouro de Napoleão.
Henrique ouviu esta frase com um baque. Como era possível que ele soubesse? E que tipo de doente era esse que usava o próprio dedo como piercing?
– Roberto, como ele sabe o que nós viemos fazer?
– Deixa de ser trouxa, eu já tinha contatado o Remy por e-mail lá desde o Brasil, ele estava nos esperando. E o tour de caça ao tesouro do qual ele é guia é a única atração turística que esta cidadezinha tem, isto é tirando as velhas loucas.
Remy deu uma risada alta e virou a mão direita, para mostrar que seu dedo indicador na verdade estava apenas dobrado, e não cortado. Era bem uma brincadeira para criança
– Este piercing não é de osso de verdade, é uma imitação de cerâmica. É muito mais higiênico! Mas entrem, entrem e conheçam o mundialmente famoso “Museu da Travessia”.
Os dois entraram no museu, que era na verdade apenas uma pequena sala com fotos e quadros espalhados pelas paredes.
– Dá uma olhada no museu enquanto eu converso com o Remy, já nos falamos Henrique.
Henrique olhou pausadamente para os quadros. Alguns eram apenas pinturas de belas paisagens montanhosas, mas havia algumas réplicas de mapas antigos. Um deles chamou a sua atenção, pois mostrava o trajeto que Napoleão teria feito para atravessar os Alpes em sua famosa campanha. Havia algo errado naquela trajetória, algo que não encaixava, e Henrique se esforçou para tentar perceber o que era.
– Curtindo o museu? – disse Roberto, entrando na sala de exibição.
– Roberto, posso dar uma olhada no seu mapa?
Roberto tirou de seu bolso um caderno, e do caderno tirou uma folha de sulfite dobrada. Era uma fotocópia do mapa que ele havia mostrado a Henrique tanto tempo atrás, naquele dia memorável na padaria.
– Olha só, as trajetórias são muito diferentes. Elas começam igual, mas tem um ponto aqui no meio em que elas se separam – disse Henrique comparando o mapa de Roberto com o mapa na parede.
Roberto olhou com atenção para o mapa na parede.
– É provável que, para acelerar um pouco a travessia, Napoleão tivesse ordenado que as tropas seguissem pela passagem principal, enquanto as cargas menos cruciais fossem por caminhos alternativos. Para não atrapalhar a marcha das tropas, entende?
– Sei. – respondeu Henrique com pouca convicção.
– Eu boto mais fé no nosso mapa.
– Eu não gostei muito dessa história de tour de caça ao tesouro. Não era que só o seu tatarabisavô sabia da existência desse saco de ouro perdido? E se alguém mais já achou?
– Não se preocupa, ninguém achou. Todo mundo conhece a história da carroça cheia de ouro que caiu no desfiladeiro, mas só nós sabemos que não foi todo o ouro que foi recuperado. E, quer saber mais, eu acho que foi bom você ter descoberto que o nosso mapa é diferente desse mapa, que provavelmente é o que todo mundo conhece. Isso me deixou mais confiante ainda!
– Tá bom, vou tentar compartilhar seu entusiasmo!
A conversa foi interrompida por Remy, que apareceu no meio dos dois e os segurou forte pelos ombros.
– Meus amigos brasileiros, então vocês vão comigo amanhã explorar o Mont Mort? O nosso amigo Robért aqui pegou o pacote completo, incluindo os detectores de metal. Vai ser jóia, vocês vão ver só, e estou com um pressentimento de que vamos ter sorte e encontrar coisas muito bacanas lá! Ah, só que o pagamento é adiantado…
Roberto olhou para Henrique com um sorriso meio envergonhado enquanto coçava sua nuca com a mão direita.
– Er… Você poderia acertar?
– Claro, já é muito tarde para ficar com frescura, né?
Henrique tirou seu cartão de crédito da carteira e depois de ter assinado o canhoto da compra Remy abriu um enorme sorriso e exclamou.
– Muito bem, senhores! Amanhã às seis da manhã passarei para buscá-los no albergue com todo o equipamento. De lá, vamos repetir os passos imortais do Imperador!
Henrique e Roberto saíram do museuzinho mequetrefe alegres e empolgados com o entusiasmo de Remy. Decidiram tirar o resto do dia para descansar bem, pois os próximos dias seriam de esforço físico e mental extremos.
– Roberto, não entendo por que temos que ir com o Remy se temos o mapa.
– O Remy era meu plano B. Só que ele não aceitou alugar só o equipamento, tinha que ter o tour junto. Mas não se preocupa que quando estivermos nas montanhas dou um jeito de despachá-lo e aí continuamos sozinhos.
Voltaram ao albergue sem encontrar com a velhinha neurótica. Jantaram uma refeição leve, despediram-se e foram a seus quartos.
Henrique tentou, mas mesmo cansado que estava do voo mal dormido e de toda a agitação do dia, não conseguia dormir. Pôs-se a contar moedinhas, em vez de carneirinhos, entrando em um grande cofrinho de ouro, até que conseguiu finalmente dormir o sono dos justos.
…continua em: O Ouro do Imperador - Capítulo 4