In your face, parte 3: O General - Uma batalha láctea de Starcraft
Originalmente publicado em 2014-12-09 01:23 no blog Patinete a vela.
Na terceira parte deste relato épico temos a chance de conhecer a mão invisível que tudo controla e constatamos que a ignorância é uma benção. Se você ainda não o fez, antes de ler este conto leia a primeira parte e depois a segunda parte.
In your face, parte 3: O General
A ponte de comando estava vazia e a única iluminação provinha do painel central, onde sentado em uma confortável poltrona o General observava o vazio do espaço adiante e a grande esfera cinzenta que era o planeta Tertulii II, sobre o qual seu cruzador de batalha pairava em órbita geo-estacionária.
“Sentado” seria uma licença poética, já que do corpo original do General apenas restavam parte do seu tronco e metade de sua cabeça. Seu cérebro repousava no interior de uma redoma de vidro, engastada em uma cabeça biomecânica. Seria mais correto dizer que o General estava “depositado” sobre essa poltrona, mas embora seu corpo não pudesse mais sentir o prazer agradável de uma almofada confortável sob suas nádegas, seu cérebro permanecia bem ativo enquanto observava os monitores e recebia as informações do campo de batalha no planeta abaixo.
O imediato, segurando uma grande bandeja, parou na porta, esperando receber a instrução para entrar. Ele sabia melhor do que ir simplesmente interrompendo aquele ritual que já presenciara tantas vezes nos últimos quatro anos em que acompanhava o General. Era um trabalho ingrato, ter que cuidar deste ser meio mecânico e meio humano. Parecia que juntava o pior dos dois mundos - peças mecânicas que constantemente exigiam reparo e lubrificação, e manias humanas que constantemente exigiam paciência e resignação. Mas, por alguma razão, o General não confiava em nenhuma outra pessoa para atender a seus caprichos, e essa predileção com certeza resultava em alguns privilégios de que o Imediato não gostaria de abrir mão.
O General era longevo, o que era raridade entre os militares da Império. Quem conseguisse sobreviver às batalhas por muito tempo eventualmente caía nos desafetos do Imperador Mengsk, que se enxergava como um grande líder militar e não suportava rivais. E cair nos desafetos de Mengsk não era uma atitude… saudável…
O General caíra nos desafetos de Mengsk sim, várias vezes, e chegara a ser exilado para os planetas mais distantes do Império, mas a carência de líderes competentes forçara o Imperador a engolir seu orgulho e trazer de volta vários de seus desafetos que, por incompetência de alguém na cadeia de comando, calharam de ainda estarem vivos.
Mas a seu favor o General tinha a vantagem de um currículo quase impecável. Não vencia todas as batalhas, mas já dizia o velho ditado que de que adianta vencer a batalha mas perder a esportiva… Quero dizer, vencer a batalha mas perder a virgindade… Ah, não lembro, é um ditado muito antigo, mas o General sempre conseguia transformar suas derrotas nas batalhas em vitórias na guerra. Em uma sucessão rápida de batalhas ele galgara a escada de condecorações, passando rapidamente da insígnia Ouro para a insígnia Diamante sem nem mesmo passar pela Platina. Receberia a condecoração de Grão Mestre se esta não fosse reservada exclusivamente a homenagens póstumas a militares de alta patente que já estivessem queimando no fogo do inferno.
O General revisava a posição de suas tropas mais uma vez. Era uma estratégia ousada a que ele estava aplicando. A ponte de comando estava vazia, entre outros motivos, porque os conselheiros militares se recusavam a participar do planejamento e execução de estratégia tão vil, tão discordante da moral e virtude das guerras sangrentas que o Império vinha travando contra os planetas rebeldes.
Era uma estratégia muito arriscada, pois o General sacrificava a sobrevivência a médio prazo arriscando um ataque rápido a curto prazo, e com isso pondo em risco também todos os recursos da base caso o ataque não fosse bem sucedido. Para tornar a investida mais rápida, ele ordenava a construção dos quartéis muito próximos às entradas das bases inimigas, o que também os deixava muito vulneráveis.
Mas o General era pragmático também. Seu raciocínio ia um pouco na linha do “Eu estou aqui, no meu cruzador de batalha, muito longe do campo de batalha. É muito fácil assumir riscos assim.” E assim os assumia, sem muita dor na consciência, mesmo quando os ataques não eram bem sucedidos e ele observava em seus monitores como seus soldados morriam um por um, e imediatamente depois os VCEs eram destruídos, e logo depois seus quartéis, seus depósitos de suprimentos…
A vida do soldado, enfim, não valia nada mesmo…
Desta vez, porém, as chances de vencer a batalha eram maiores, pois o General aprendera a usar, mesmo que de forma limitada, as forças dos zergs contra seus adversários. Seus próprios soldados lutariam rodeados de zergnídeos e, na confusão que gerariam nas bases adversárias, muito provavelmente conseguiriam matar um por um os soldados inimigos, e imediatamente depois os VCEs, e logo depois seus quartéis, seus depósitos de suprimentos… Pena que, em todas as batalhas anteriores em que ele usara essa mesma estratégia o resultado era sempre o mesmo - eventualmente a colméia crescia, fugia ao controle e acabava aniquilando todas as formas de vida não-zerg do planeta, inclusive seus próprios soldados, mas enfim, era fato notório que a vida do soldado não valia nada.
O General levantou seus olhos do monitor que estava observando. Tudo estava no lugar. Os quartéis avançados já estavam liberando soldados, os zergnídeos já estavam saindo das colmeias e os comandantes adversários nem estavam esperando pelo ataque.
O General mandou um comando para o Imediato trazer sua bandeja. O Imediato entrou, caminhando lentamente, carregando a enorme bandeja que teimava em se desequilibrar em seus braços. A bandeja continha o elemento mais importante do ritual do General, ao mesmo tempo sua salvação e sua perdição, pelo menos a de seu corpo original que tinha uma severa intolerância à lactose e que definhara perante à insistência de seu dono em alimentá-lo com o pior dos venenos.
O Imediato depositou a bandeja cheia de queijo na mesinha ao lado da poltrona do General. O General soltou um ruído que poderia se aproximar de um riso, mas mais provavelmente era apenas a vibração dos pequenos servomecanismos que controlavam sua boca mecânica enquanto ele a abria para arremessar alguns pedaços de delicioso queijo brie. Seu novo sistema digestivo biomecânico digeria que era uma maravilha, então ele podia se satisfazer sem medo.
O imediato olhou com repulsa o General, mas não ousou fazer qualquer manifestação. Seu irmão era um soldado, e se não estava na superfície de Tertulii II, provavelmente estaria em outro planeta lutando as batalhas para outro general desgraçado e oferecendo sua vida em troca de uma mísera estrelinha na lapela de seu comandante. Ele não podia deixar de se compadecer daqueles soldados que, não importando qual o resultado da batalha, enfrentavam a morte certa de qualquer jeito.
Enquanto se afastava, observou no espaço distante uma tênue luz pulsante, também em órbita geo-estacionária sobre Tertulii II. Ele sabia que aquela luz era um dos cruzadores de batalha de um dos comandantes adversários. Estava logo ali, ao alcance dos canhões Yamato. O Imediato nunca entendeu por que, em vez de sacrificar a vida de milhares de soldados e operários em prol do controle de um pedaço de terra estéril, os comandantes não podiam simplesmente atacar os cruzadores de batalha um do outro e acabar logo com isso, que vencesse aquele que tivesse os melhores canhões, sei lá.
Mas foram quatro anos presenciando coisas que ele preferia poder esquecer. Nesses quatro anos ele aprendera a engolir seus escrúpulos. Havia tempo ele havia percebido que, o que era assunto de vida ou morte para os pobres soldados que davam suas vidas para o império, para os comandantes não passava de um jogo.
O Imediato saiu, apenas a tempo de ouvir o que agora inconfundivelmente era a risada maquiavélica e chiada do General, enquanto este murmurava para seu console: “gg”.