O Ouro do Imperador - Último capítulo
Originalmente publicado em 2015-01-24 12:06 no blog Patinete a vela.
Este é o texto 9 de 10 da Primeira Maratona de Posts do Patinete a Vela.
Se você ainda não o fez, leia O ouro do Imperador - Capítulo 7.
O Ouro do Imperador
Capítulo 8
Onde ouro é finalmente encontrado. Mas a que custo?
Foi mais uma noite mal dormida para Henrique. Teve sonhos claustrofóbicos, em que se imaginava enterrado vivo em um caixão. Despertou com um suor frio escorrendo por sua têmpora e ficou mais tranquilo quando, olhando para sua frente, viu seu amigo Roberto examinando seu pequeno caderno de anotações.
Sua cabeça ardia com uma dor insuportável, como se além da febre delirante causada por seu ferimento ele tivesse recebido uma pancada forte. Tentou se levantar mas não conseguiu. Seus braços e pernas estavam imobilizados, amarrados fortemente com as cordas de escalada que Remy havia guardado nas mochilas.
– Roberto, o que está acontecendo?
Roberto levantou seu olhar do caderno e olhou para Henrique em silêncio.
– Por que estou amarrado?
Roberto deu um longo suspiro enquanto fechava seu caderno e se aproximava de Henrique.
– Nós vamos receber um convidado e eu não queria arriscar qualquer imprudência de sua parte.
Henrique tentou afrouxar as cordas mexendo os seus braços e pernas, mas os nós estavam muito apertados e seus músculos muito fracos para que tivesse qualquer efeito.
– Para de brincadeira, me desamarra e vamos procurar logo o tesouro! Estamos tão perto – disse Henrique em um tom de súplica.
Roberto apenas suspirou e caminhou em direção à entrada da caverna. De lá, ficou olhando para os lados procurando por alguma coisa, ou alguém.
– Eu lamento muito o que vai acontecer com você, não pense que não.
– Do que você está falando?
– Seria mais humano se eu acabasse com seu sofrimento agora, de uma vez. Mas as regras são dele e isso seria inaceitável.
– Do que você está falando? – exclamou Henrique, assustado.
Roberto deu um novo suspiro, seguido de um ataque de tosse.
– Maldita gripe!
– Dane-se você e sua maldita gripe, me explique o que está acontecendo!
– Nosso convidado é alguém evasivo e difícil de encontrar. E muito tímido. Ele sente vergonha de sua própria aparência, coitado. Eu o estive procurando desde que saímos de St. Bernard, mas não encontrei traços.
O pânico começava a tomar conta de Henrique. Começou a forçar convulsões, na tentativa desesperada de afrouxar as cordas. Mas e se conseguisse se soltar? O que faria? Ele estava doente e fraco, Roberto claramente tinha a vantagem. Não teria como sobrepuja-lo.
– Eu não tinha certeza se ele estava ciente de nossa presença, por isso eu precisava atrai-lo de alguma forma. Ele tem uma apreciação pelo cheiro de sangue e suas bandagens foram muito convenientes. Supus que ele estava por perto quando encontrei essa cabra que ele gentilmente nos cedeu para matarmos a fome. Mas eu tinha que ter certeza de que ele nos encontraria.
Henrique de repente somou dois mais dois e gritou em tom acusatório.
– Você me empurrou a propósito! Era parte de seu plano que eu me ferisse!
– Eu imaginava que você quebraria a perna, mas você é um homem de sorte! Toda essa dor que você está sentindo agora, imagina como seria pior com a perna quebrada?
– Me solta! Me deixe ir embora, eu vou sozinho, por favor! – suplicou Henrique.
– Desculpa não vai dar.
– Por que você está fazendo tudo isto?
– Henrique, é importante que você entenda que existem coisas que são maiores do que a própria vida. Hoje você vai cumprir o seu papel em um esquema maior, seu sacrifício vai possibilitar coisas incríveis. Você devia se sentir menos amedrontado e mais orgulhoso.
Henrique chorava sem controle.
– O tesouro? Era tudo mentira? Todo esse lance de Napoleão era mentira?
– Não era mentira. O tesouro existe. E sim, você era a única pessoa que poderia me ajudar. A única pessoa que poderia embarcar em uma aventura absurda junto a um praticamente estranho.
– Roberto, eu te suplico, pela última vez, por favor me deixe ir. Que tesouro vale acabar com a vida de um amigo?
– Eu estou sofrendo muito também, vai ser muito difícil superar. Mas tem ficado mais fácil.
Fez-se silêncio. Henrique não sabia mais o que dizer. Estava em estado de choque e esperava a qualquer momento descobrir que tudo era apenas um pesadelo e acordar em sua cama em seu apartamento de solteiro. Assim que isso acontecesse, ele se prometeu que iria levar uma vida completamente diferente.
O silêncio perdurou por alguns minutos, até que se ouviu desde o exterior da caverna o leve ruído de pedras rolando pela encosta. Então apareceu uma grande sombra na entrada da caverna.
Roberto olhou para a sombra com temor reverencial. A sombra olhou para ele, depois olhou para Henrique. Aos poucos foi possível discernir mais detalhes sobre a criatura. Que visão aterradora! O monstro tinha a forma de um homem, mas não poderia ser confundido com um homem normal. Era uma criatura hedionda, de braços e músculos enormes. Sua pele amarela mal encobria os músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um negro luzidio e como que empastados. Seus dentes eram de um branco imaculado. E, em contraste com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios retos e de um roxo-enegrecido.
A criatura vestia um casaco azul esfarrapado e, como indício de que pelo menos possuía a vaidade característica dos humanos, possuía vários adornos pendurados em seus ombros e sua roupa. Seu casaco tinha algumas medalhas penduradas. Em seu pescoço, um colar de dentes que, sob uma inspeção mais cuidadosa, seria possível constatar serem de seres humanos.
A criatura olhou para Roberto e em seguida para Henrique. Caminhou pelo interior da caverna a passos lentos porém longos. Quando chegou perto de Henrique, ajoelhou-s e começou a desamarrar as cordas.
Quando a pressão das amarras se aliviou, Henrique por um momento teve um sentimento de esperança. Por que ele deveria achar que esta ser iria lhe causar algum mal? Talvez fosse um homem desafortunado, expulso do convívio da sociedade por sua aparência repulsiva, e talvez ele apenas precisasse de um outro ser humano para mostrar que todo ser vivo, não importa sua aparência, é digno de compaixão.
A criatura desamarrou as cordas quase que com delicadeza e ficou agachado olhando para Henrique, que já começava a se acalmar. Talvez ele conseguisse conversar com a criatura, convence-la de que ainda haveria esperanças, que se ela o deixasse ir embora poderiam talvez se tornar amigos.
As esperanças de Henrique se esvaíram quando a criatura tirou um pedaço de pano vermelho de seu bolso. Era uma das bandagens dos curativos que Roberto fizera em sua perna. A criatura levou o pano ao nariz, onde inalou profundamente e então o guardou novamente.
“Não há esperança”, pensou Henrique. “Esta é uma criatura sanguinária e estou perdido”, lamentou, imediatamente antes da dor excruciante que sentiu guando a criatura afundou seus dentes afiados na sua perna esquerda e rasgou um enorme pedaço de sua carne. Henrique gritou com toda sua força enquanto a criatura se deleitava em seu banquete antropofágico, mas gritar não aliviava sua dor. Roberto observava tudo de longe, com visível tensão.
Com horror, Henrique observou que no meio de seu colar de dentes havia um adorno que ele não havia percebido antes. Era um pequeno cilindro de porcelana, no formato de uma falange.
Não teve tempo de pensar no destino que o guia havia tido, que provavelmente seria o mesmo que ele teria, pois o desmaio veio logo em seguida. A criatura permaneceu imóvel enquanto mastigava. Levantou-se, então, e como se carregasse uma criança jogou Henrique por cima de seu ombro. Virou-se e olhou para Roberto, que por mais vezes que tivesse visto a criatura nunca conseguiria se habituar a tal visão. Colocou a mão em seu outro bolso, de onde tirou um pequeno saco de couro que fazia um tilintar metálico enquanto a manipulava. Arremessou-a aos pés de Roberto. Ao cair a bolsa se abriu espalhando seu conteúdo pelo chão da caverna: dezenas de moedas douradas com a efígie de Bonaparte, Premier Consul.
A criatura abandonou a caverna em silêncio, assim como entrara. Roberto ficou lá, contando seu tesouro. Sentia algo pelo que tinha feito? Sentia, sim, um incômodo no fundo de seu estômago. Mas a cura para esse mal estar ele já conhecia - viajar. E durante a viagem, quem sabe, ele encontraria outro parceiro disposto a ajudá-lo a conseguir o restante do ouro perdido do Imperador.