Originalmente publicado em 2013-09-10 19:36 no blog Patinete a vela.

Itinerário

Era uma vez um rapaz que queria viajar de trem de Kiev, na Ucrânia, até São Petersburgo, na Russia. Se ele fosse um turista esperto, ele teria ido de avião. Seria uma viagem tranquila de 2 horas, descomplicada, nem tão cara assim. Mas este rapaz tinha a idéia de fazer uma viagem leeeeeeenta, por isso ele TINHA que pegar um trem que levaria 20 horas para chegar ao destino. Até aí tudo bem, mas mal sabia o nosso herói o que aguardava por ele em um país desconhecido que fica entre a Rússia e a Ucrânia. Este país é a Bielorussia…

O alegre viajante sabia que para viajar para a Bielorussia era necessário um visto, mas ele achava que, como não sairia do trem em toda a viagem, um visto nesta ocasião não seria necessário. Além disso, obter um visto demoraria cinco dias úteis, era domingo quando ele decidiu fazer a viagem e ele queria viajar na segunda-feira seguinte e seu amigo ucraniano lhe havia dito que um visto não seria necessário. Armado de todos estes fraquíssimos argumentos, o rapaz conseguiu comprar sua passagem sem muitas dificuldades (além das dificuldades normais ao se tentar comprar uma passagem com uma atendente que só fala em russo).

No dia da viagem, o nosso amigo estava completamente deslumbrado. Viajaria em um trem dormitório, onde os vagões são divididos em cabines, cada um com quatro camas. Tudo era divertido e interessante para ele. Quando os três russos que viajariam na mesma cabine que ele entraram carregando três caixas de pizza, caixas com batatas fritas, cervejas e coca cola, nosso herói até mesmo chegou a pensar: “lol, como esses russos marotos são experientes e sabem se preparar para estas longas viagens”. O rapaz fez amizade com os russos e tentava conversar com eles, em uma mistura babilônica de russo, alemão e inglês.

Durante a viagem, o rapaz manifestou uma inquietação crescente com o fato de não ter um visto. Os seus amiguinhos russos tentaram tranquilizá-lo, dizendo que eles conheciam um bielorusso casado com uma brasileira e que por causa disso eles sabiam com plena certeza que um visto não era requerido para atravessar a Bielorussia. O viajante juntou mais este argumento irracional aos outros argumentos placébicos que ele já tinha e ficou tranquilo.

A viagem transcorreu sem complicações até chegar na fronteira da Ucrânia. O oficial da imigração entrou no trem e pediu pelos passaportes de cada um dos passageiros. Quando chegou a vez de nosso amigo, o oficial viu que seu passaporte era brasileiro e constatou que também faltava o visto para a Bielorussia. O viajante argumentou que brasileiros não precisavam de visto para a Russia nem para a Ucrânia, como se fizesse alguma diferença, e os russos também falaram alguma coisa que o rapaz não entendia. O oficial olhou, e já que o trem estava saindo da Ucrânia mesmo e não fazia nenhuma diferença para ele qual era a opinião dos bielorussos, ele simplesmente estampou o carimbo de saída no passaporte de nosso amigo.

O rapaz, até agora já dopado por uma enorme pilha de placebos, achou que tudo estava bem e que ele conseguiria chegar a São Petersburgo, por isso conversava animadamente com seus amiguinhos russos. Ele até mesmo aproveitou para mandar fotos do trem para seus amigos em uma rede social, dizendo como estava sendo legal sua viagem. Mal sabia ele que os furos do destino estavam se alinhando e que aquela fronteira entre a Ucrânia e a Bielorussia se mostraria uma barreira intransponível.

O trem continuou seu trajeto e parou pouco tempo depois, em uma estação cujo único propósito era fazer o controle de imigração de entrada e saída da Bielorussia. Novamente, um oficial entrou no vagão e solicitou os passaportes de todos os passageiros. Ele chegou à cabine de nosso amigo, pegou os passaportes de cada um dos russos, apertou alguns botões em um pequeno computador que carregava e depois carimbou todos eles (os passaportes, não os russos). Depois pegou o passaporte do rapaz. Observou que era um passaporte brasileiro, observou que não havia visto e, ignorando todos os argumentos fracos que o rapaz e seus amigos russos tentaram usar, saiu do trem para consultar alguma coisa com alguma outra pessoa. Enquanto ele não voltava, um dos amigos russos disse que o rapaz poderia tentar conversar com o oficial, que talvez ele deixasse seguir. Mas o oficial voltou e pediu para o nosso herói que pegasse suas coisas e descesse do trem.

O rapaz despediu-se dos seus amigos, pegou suas coisas e desceu. No lado de fora do trem havia muitos oficiais de imigração, provavelmente mais do que dez. O oficial que pegou o passaporte do rapaz pediu que este o acompanhasse e o levou para uma sala. Era uma sala pequena, dividida ao meio por um balcão e onde havia uma porta que levava a outra pequena sala onde havia um servidor de dados e onde ficavam guardados os computadores que os oficiais usavam quando entravam nos trens. Do outro lado do balcão havia uma escrivaninha com um computador, onde sempre havia alguém sentado teclando alguma coisa, lendo um jornal ou falando ao telefone. Em um canto apertado havia duas cadeiras desconfortáveis que o rapaz teria chance de conhecer bem de perto. O oficial explicou para o rapaz, em russo, claro, que ele não poderia entrar na Bielorussia porque precisava de visto, mesmo que fosse só para trânsito, e que ele deveria ficar esperando naquela sala até o próximo trem de volta para a Ucrânia. Ele consultou em uma tabela quando seria o próximo trem e a resposta beirou o ridículo: seriam dez horas de espera.

Itinerário

Uma foto sorrateira desde a cadeira na sala de controle

O rapaz então sentou-se naquela cadeira e começou sua espera. Nesse tempo ele leu, escreveu um pouco em seu computador, comeu uma banana, tentou bater papo com os oficiais que entravam e saíam da sala, leu mais um pouco, comeu uns amendoins, leu, levantou para se esticar, tentou dormir, leu mais um pouco, editou uns vídeos em seu computador, e leu. Enquanto esperava, o rapaz foi bem tratado pelos oficiais. Um deles disse que quanto o rapaz precisasse ir ao banheiro era só pedir, que uma escolta seria providenciada imediatamente. Outro tentou tranquiliza-lo dizendo que não se preocupasse, que não era a primeira vez que aquilo acontecia. O rapaz até mesmo conseguiu que um dos oficiais lhe levasse uma xícara com água quente para preparar um chá!

Chegou o momento em que o rapaz precisou ir mesmo ao banheiro. Quando isto aconteceu, um dos oficiais veio e o escoltou para fora da sala onde ele se encontrava. Os dois caminharam por um pátio e caminharam pelo meio de várias pequenas casas até chegarem a um portão. Do outro lado do portão havia uma casinha onde ficavam os banheiros. É claro que chamar de “banheiros” é muita generosidade, porque chegando lá o vaso sanitário era apenas um buraco no chão, de onde exalava um fedor insuportável, e que provocou arrepios ao nosso herói quando ele imaginou o que aconteceria se, por exemplo, ele deixasse seus óculos ou seu celular caírem lá dentro.

Ao sair do banheiro o rapaz constatou que, tirando as poucas casinhas que compunham a base de controle de imigração, não havia absolutamente nada em volta. Nada. Apenas árvores até onde a vista alcançava e os trilhos do trem, que em uma direção levavam à terra prometida que nunca seria alcançada, e que na outra direção levaria de volta ao ponto de partida. Enquanto caminhava para se reunir ao oficial, o rapaz escutou três estalos fortes vindo de longe, do outro lado dos trilhos. Imaginou que fossem tiros, mas ficou com medo de perguntar ao oficial.

Assim que voltou à sua cadeira, o rapaz pegou seu computador e começou a ler uns guias de viagem que seu amigo ucraniano lhe havia passado. Você sabe alguma coisa sobre a Bielorussia? Bom, o nosso herói não sabia, por isso ficou surpreso ao constatar que este país desconhecido tem a fama de ser a “última ditadura da Europa”, governada por um ditador caprichoso e onde a pena de morte ainda é uma ferramenta de controle da oposição muito utilizada! Se antes o rapaz já estava preocupado em não chamar a atenção negativamente dos oficiais, depois disto ele teve um comportamento exemplar.

Em algum momento, o rapaz começou a se preocupar sobre como seria exatamente sua volta para Kiev. De acordo com os oficiais, ele receberia de volta parte do dinheiro que ele havia gasto na passagem, excluindo o valor da passagem desde Kiev até aquele maldito posto de controle de imigração. Mas para voltar a Kiev o rapaz deveria comprar uma passagem no trem. E nisto residia uma dificuldade: no trem só seriam aceitas hryvnas (a moeda oficial da Ucrânia), e o rapaz, pensando que ele não voltaria mais para a Ucrânia, havia se livrado de suas últimas hryvnas. Mas tudo bem, o rapaz pensou, era só pegar o trem até a próxima estação, sair correndo, comprar uma passagem usando o cartão de crédito e voltar para o trem antes que este partisse e todos ficavam felizes! Mas não seria possível, porque a próxima estação seria uma estação de controle de imigração na Ucrânia, tal qual a estação de controle da Bielorússia onde eles se encontravam, e lá tampouco haveria luxos como caixas eletrônicos ou leitores de cartão de crédito. O oficial então explicou como seria a odisséia de volta. Eles estavam agora em uma estação chamada Teruha, na Bielorússia. O rapaz deveria pegar o trem até Gornostaevka, a primeira estação após a fronteira da Ucrânia. De lá ele deveria pegar um ônibus ou algum transporte até Chernigov, onde ele encontraria caixas eletrônicos e banheiros decentes.

Tudo bem então! O tempo passou, até que às duas e meia da madrugada chegou o trem. O rapaz foi escoltado por um dos oficiais até o trem, onde pegou o primeiro lugar vago disponível. Ele estava morrendo de sono e sua vontade era simplesmente deitar em uma das camas do compartimento e acordar apenas em Kiev, mas ele sabia que teria que descer no meio. Tentou negociar com a comissária de bordo sobre a possibilidade de ele ir com o trem até Kiev e chegando lá ele sairia correndo para sacar dinheiro e pagar a ela a passagem, mas ela era irredutível (ou não entendeu uma palavra do que ele quis dizer, o que era mais provável). Então, quando o trem chegou a Gornostaevka, o jovem viajante desceu do trem. Quando ele desceu ele já estava sendo esperado, então um outro oficial o acompanhou correndo até o guichê daquela estação para ver se seria possível comprar a passagem. Mas, obviamente, aquela era uma estação miserável no meio do nada, ele não tinha dinheiro ucraniano para comprar a passagem e não havia nem sequer sinal de qualquer fenda onde um cartão de crédito pudesse ser enfiado (por favor poupe-me das piadas de mau gosto). E isso não era tudo! Por ser uma estação miserável no meio do nada, não havia qualquer meio de transporte que pudesse levar o rapaz para Chernigov! Nem havia qualquer hotel por perto! E, mesmo que o rapaz conseguisse dinheiro de algum jeito, o próximo trem que passaria por aquela estação rumo a Kiev seria apenas em dois dias!

O rapaz não sabia o que fazer, mas por sorte houve uma comoção entre os oficiais que estavam lá presentes e eles discutiram entre si sobre o que fazer com o turista inconveniente. Até que um deles se ofereceu para dar uma carona ao rapaz até Chernigov. O oficial se chamava Sasha e ele era o treinador do cão farejador que era usado para procurar por drogas e armamentos nas bagagens dos passageiros dos trens. Sasha levou o rapaz para seu carro, colocou sua pastora-alemão no porta malas e os dois partiram rumo a Chernigov. A idéia era tentar chegar lá antes que o trem que acabara de partir, para dar ao rapaz a chance de comprar uma passagem e chegar logo a Kiev. No caminho, o rapaz pôde constatar que de fato Gornostaevka ficava no meio do nada. Eles pegaram uma estrada estreita no meio de uma floresta e demorou até chegarem a uma autopista. Quando chegaram, o rapaz viu em uma placa que Chernigov não era tão próxima assim, ficava ainda a 40 km de distância de onde estavam! Assim que, se Sasha não tivesse se oferecido para dar uma carona, seria uma caminhada longa para o nosso pobre protagonista.

Tudo parecia ir bem. Sasha tentava conversar com o passageiro, e os dois até que conseguiam, mas quando o vocabulário deste começou a escassear, os dois ficaram apenas ouvindo música. Até que, subitamente, no meio daquela estrada escura por onde não passava um carro sequer, Sasha reduziu a velocidade, parou o veículo no acostamento e desligou o motor. Neste momento o rapaz pensou: “E agora, o que vai acontecer? Ele vai me largar aqui no meio do nada?”. Enquanto Sasha saía do carro rapidamente começou a ficar preocupado, e começou ele mesmo a abrir a porta e sair quando ele viu o que havia acontecido: um dos pneus traseiros do carro havia furado. Quanta sorte! Sasha já havia aberto o porta-malas e deixado sua cadela sair, pegou o pneu estepe, o macaco e começou a desapertar as porcas. Ergueu o carro com o macaco, removeu as porcas e tentou puxar a roda. Mas a roda não saía. Tudo bem, ele deve ter pensado, basta dar uns chutes que a roda sai. E como ele chutou. Chutava, chutava, chutava mas a roda não saía de jeito algum. Tentou dar umas voltas com o carro para ver se a trepidação ajudava a remover a roda, mas esta não saía. E assim eles ficaram, sozinhos, no meio do nada, com o carro com o pneu furado, tentando de todas as formas imagináveis remover esta roda, por mais de meia hora. O rapaz pensava na sequência de eventos que lhe estavam acontecendo naquele dia e só conseguia pensar em que devia haver cuspido na cruz de Murphy, que não era possível tanto azar. Mas no fundo, no fundo ele estava achando toda a experiência tão surreal e cheia de surpresas que na verdade estava gostando!

Então veio ao nosso protagonista uma idéia. Ele sugeriu ao Sasha que tentasse posicionar o macaco hidráulico atrás da roda, apoiado na estrutura do carro, e que o estendesse para tentar empurrar a roda para fora. Sasha não o fez de imediato, mas quando percebeu que os chutes não ajudariam, tentou a sugestão proposta e bingo! Funcionou! Depois de todo esse tempo perdido, ele olhou para o viajante e disse: infelizmente acho que você vai perder o trem. Mas o viajante nem estava mais preocupado com isto, então os dois embarcaram no veículo e voaram até Chernigov. Lá o Sasha ajudou o rapaz a comprar uma passagem para Kiev. Como Chernigov é uma cidade grande, com quase um milhão de habitantes, havia muitos trens para Kiev, e o próximo era dali a dez minutos. Nisto já eram 6:12 da manhã de terça feira. O rapaz despediu-se do Sasha, pensando como, apesar das dificuldades da viagem, foi legal conhecê-lo e ter feito um tour não oficial pelo outro lado da burocracia ferroviária ucranio-bielorussa. Embarcou no seu trem de volta a Kiev e dormiu feito um bêbado em coma alcólico, até acordar na estação final do trem.

Itinerário Sasha e sua cadela Arta

Horário de partida de Kiev: 10 da manhã de uma segunda-feira. Horário de chegada a Kiev: 9:10 da manhã. Duração da viagem: quase vinte e quatro horas. Distância entre a origem e o destino: 0 km. Resultado da viagem: EPIC FAIL. Mas com uma história legal para contar.