A caçada (improvisação a quatro mãos)
O texto abaixo é o resultado de um exercício de improvisação a quatro mãos que realizei com meu amigo Roberto. A idéia era cada um escrever um parágrafo, evoluindo a história descrita no parágrafo anterior. Rapidamente se transformou em um exercício de ver quem conseguia chocar mais o outro.
Não sei exatamente quando foi escrito, provavelmente em algum momento entre 2015 e 2017.
O resultado é esta pérola, que ainda será estudada em congressos de psiquiatria.
A caçada
Nos aproximamos da aldeia sorrateiramente aproveitando a escuridão. A lua cheia estava escondida pelo céu encoberto, então não seriamos vistos enquanto chegávamos perto dos portões. O guarda solitário, em um torpor semi adormecido, se sobressaltou ao perceber uma sombra se materializando em um de nós à sua frente. Ficou paralisado enquanto nosso irmão rasgava sua carne e garantia que seus gritos não seriam ouvidos. Alguns de nós entraram pelo portão, enquanto outros de nós escalavam o muro e, do alto, observavam nossa presa da noite.
Rapidamente a vila foi infestada por nós. Eu tinha uma sensação de tranquilidade e segurança a cada vez que sentia o sangue quente de um aldeão jorrando em mim. Estávamos receosos por causa dos acontecimentos ocorridos na última Caça, mas quanto mais a vila era pintada de vermelho maior a certeza de que tudo iria ficar bem. Chegou num ponto em que nossa confiança e excitação eram tanta que eu soltava risadinhas quando partia para o próximo aldeão. Além disso, o nosso alvo nem havia percebido que estávamos lá ainda.
Eu me vi sozinho entrando em um beco enquanto perseguia uma criança. Os gritos de desafio dela me estimulavam. Seria uma presa fácil, talvez mais fácil que sua irmã. Talvez não devesse ter ido atrás dela, porque quando a encontrei ela estava sendo protegida por um deles, um indivíduo grande, corpulento, que segurava uma lança com quase o dobro de seu tamanho. Ele me olhou, com um olhar de reconhecimento. De sua boca saíram sons que não consegui compreender. Ele já estava com o corpo coberto de sangue, que pelo cheiro reconheci ser sangue de meus irmãos. Eu me aproximei com cautela, até conseguir enxergar um colar que ele carregava em volta de seu pescoço. O colar era feito de dentes. Nossos dentes. Isso me estimulou a dar um salto em direção à grande lança esticada dessa criatura. Eu precisava obter aquele colar para mim. A qualquer custo.
Normalmente nossos irmãos são levados para ação pelo instinto dado por Aquele Que Morreu Por Nós, mas naquele instante o instinto me guiou a parar e pensar. Percebi que a lança ensanguentada servia para nos penetrar caso saltássemos para o atacar. Então saltei - não para atacar, mas para agarrar a lança e impedir que ele possuísse qualquer controle sobre ela. A lança se partiu e ele caiu no chão meio atordoado. Eu estava enfurecido pelo que fez conosco e por ter me desafiado, então usei o meu pedaço de lança para bater em sua cabeça muitas vezes, enquanto a menina inutilmente me acertava socos e pontapés. Quando vi o corpo deitado com cabeça coberta pelo seu próprio sangue e não o nosso, me virei a menina, peguei-a pelas pernas e a transformei em duas. E finalmente o colar era meu.
Pensei em me dirigir para a praça, de onde vinha a maior parte dos gritos, e me encontrar com meus irmãos na grande festa de destruição e sangue que eles seguramente estavam realizando. Mas naquele momento eu não sentia mais vontade de lutar. Eu observei o colar. Arrebentei a corrente onde os dentes estavam dependurados. Peguei cada um deles, cheirei, observei seu formato. Até que encontrei um deles. Era aquele, eu sabia. Abri minha boca, levei o dente para sua posição no meio de seus irmãos. Apertei com força. E assim, estava ele finalmente de volta a seu lar.
Recolhi os outros dentes e os guardei comigo, pensando se deveria procurar mais briga ou se deveria me juntar aos meus irmãos quando ouvi um assovio vindo de minha própria boca. “O que é isso?”, respirei pela boca e senti o ar passando pelo furo do meu dente, usado para o colar, se transformando em um silvo irritante. Senti raiva e fui socar o rosto do corpo caído no chão, mas depois de alguns minutos notei que o silêncio havia tomado conta da vila e pensei que meus irmãos já haviam dominado o nosso alvo e o ritual estaria por começar logo. Corri e encontrei meus irmãos entoando os ritos e a nossa presa num gramado amarrada por meio de cordas e estacas, formando um X. Era um sujeito gordo e desesperado, escolhido por ser o mais importante da vila, e pensei que daria um belo casaco. O caldeirão de barro com o óleo - negro e pesado -, estava borbulhando. Então, o ritual criado por Aquele Que Morreu Por Nós e dedicado a Ele, poderia começar: um de nós começou a cortar a extremidade de uma das pernas, um corte reto que subia até quase a barriga, um corte perfeito que separava a pele da carne. Mais dois irmãos puxavam a pele pelos lados enquanto o que fez o corte agora derramava o óleo negro entre a pele e a carne para separá-los, no sentido de purificar a pele e desprezar a nojeira, o corpo daquele homem que agora chorava. Nós cantávamos cada vez mais forte. Na metade do corpo ele morreu e o resto ocorreu sem a agitação de seu corpo. A maioria voltou para continuar festejando o feito do dia enquanto alguns poucos ainda trabalhavam no nosso troféu, retirando os pequenos pedaços que sobraram e jogando mais óleo em seu interior. Eu fiquei apreciando a beleza de nosso prêmio e senti muito orgulho do nosso povo. Fiquei muito feliz por tudo estar bem e por estar com meus irmãos, assim como meu dente estava com os dele.
O final do ritual era sempre a parte mais demorada, quando cada um dos membros da tribo deveria se vestir com a aparência do sacrificado e executava os passos da celebração. Eu já havia feito isso incontáveis vezes e já não achava mais estimulante, por isso abandonei a praça e me pus a caminhar pela aldeia. Alguns aldeões me observavam por suas janelas, alguns sorriam, outros olhavam com desaprovação. Enquanto caminhava eu desviava dos corpos de nossas presas. Os aldeões levariam os corpos até a entrada da floresta no dia seguinte, isso era o combinado. De lá nossos druídas recolheriam os ingredientes para suas unções e para as oferendas a Aquele Que Morreu Por Nós, nossas matriarcas removeriam o que pudessem aproveitar para alimentar nossos infantes e o resto seria reservado para nossos banquetes. Virando em uma das ruelas acabei me deparando com jovem aldeão que segurava uma espada e gritou de forma provocativa. Aproximei-me do jovem que, mais ágil e forte do que sua idade transparecia, conseguiu em um movimento longo de sua espada fazer um corte superficial em minha perna. Ri. O jovem não estava marcado, por isso achei que a oportunidade seria ótima para lhe dar uma lição. Desviei de seu segundo golpe, saltei em cima dele, derrubando-o, e acertei um soco em sua boca. Ele engasgou e cuspiu. Procurei na pequena poça de sangue e saliva e encontrei o que buscava, um de seus belos dentes. Segurei próximo aos olhos do garoto e lhe disse: “Quando estiver pronto venha buscar”. Provavelmente não tenha me entendido, pois eles nunca conseguiram entender nossa linguagem e nunca me interessei em aprender a linguagem deles. Quando me levantei apareceu o vulto de uma mulher, provavelmente a mãe do jovem, que ajudou a levanta-lo, acertou-lhe uns tapas na cara e ofereceu com gestos para curar a ferida que ele havia me provocado. Educadamente soltei um grunhido, me virei e fui embora. O jovem ainda não entendia a natureza da colaboração que unia nossa tribo a esta vila, mas quando crescesse iria entender.
Quando voltei à praça, todos os nossos irmãos já haviam efetuado a dança, e era a vez do do Sucessor fazê-lo. Ele estava lá vestindo a pele do Deposto, enquanto os aldeões e nossos irmãos o exaltavam. Ele era merecedor de nosso respeito, pois hoje se tornava um Eminente, mas quando chegasse o momento ele se tornaria a próxima oferenda a Aquele Que Morreu Por Nós.