Música do coração
Originalmente publicado em 2014-10-14 00:10 no blog Patinete a vela.
– Com vocês, Os Escravos do Rock!
As poucas pessoas que se sacudiam na pista de dança reagiram com indiferença ao anúncio do mestre de cerimônias. A luz e o som diminuíram e o som de correntes tilintando passou a ficar cada vez mais audível. Um homem começou a aparecer no palco, vindo de uma das laterais. Este homem estava sem camisa, usando uma calça rasgada. Seu corpo estava cheio de cortes e cicatrizes. Suas mãos estavam algemadas e presas por uma corrente a um grilhão preso ao seu pescoço. Seus pés também estavam algemados. Ele caminhava muito lentamente.
Assim que o primeiro homem avançou, foi possível observar que ele estava acorrentado pela cintura e preso a outro homem que vinha atrás, com a mesma calça surrada, corpo marcado e pulsos acorrentados.
Os presentes começaram a observar com estranheza. A fila de homens acorrentados mostrou-se consistir de cinco pessoas. Assim que o último entrou no palco, um sexto homem, usando um chapéu de boiadeiro e botas de couro, entrou em passadas firmes e decididas. Em uma mão carregava um chicote enrolado. Em sua cintura havia uma enorme argola que continha uma grande quantidade de chaves.
Tenho que fazer um esclarecimento sobre algo que está me incomodando um pouco. Quando eu disse que o sexto homem usava um chapéu de boiadeiro e botas de couro não quis dizer que era o único que vestia. Espero que tenha sido claro que eram os únicos elementos de sua vestimenta que eram particularmente chamativos e a leitora deveria tentar imaginar um conjunto de roupas que se adequasse a estes elementos. Não quero que a leitora me considere mais depravado do que realmente sou achando que gosto de escrever sobre homens nus andando em suas botas e chapéus enquanto dominam homens acorrentados, humilhados e cobertos de vergonha.
Um estalo agudo foi ouvido quando o chicote do capataz (este parece ser um nome adequado, tanto para o chicote quanto para o capataz) rapidamente se desenrolou e desenhou um novo corte ensanguentado na bochecha esquerda do segundo homem da fila.
– Só é para coçar quando EU mandar, vagabundo!
O homem levou a mão ao rosto para tentar conter o filete de sangue que escorria pelo seu queixo.
– Cambada de miseráveis, assumam suas posições porra!
Os acorrentados começaram a dirigir-se aos instrumentos que estavam dispostos no palco. Era difícil para eles se movimentarem assim, presos uns aos outros. Quando um deles se esticava para pegar uma guitarra, todos eram puxados juntos. Quatro deles quase foram ao chão quando o homem do meio sentou-se na bateria.
– Afinem os instrumentos rápido!
O capataz gostava de pontos de exclamação. Não satisfeito com a ausência de um som característico destes simpáticos elementos gráficos mudos, ele gostava de usar seu chicote como uma forma de dar som e exclamação às suas exclamações.
– Afina! Esse! Instrumento! Agora!
Quatro chicotadas, quatro cortes.
– Estou afinando, estou afinando, senhor! – chorou o guitarrista, enquanto mexia nas tarraxas de seu instrumento. A tarefa não era tornada mais fácil por suas mãos algemadas e ensanguentadas.
– Você, por que não está afinando seu instrumento?
– Desculpa senhor, mas não dá para afinar o teclado! É eletrônico!
– Se eu falei para afinar, é para afinar, porra! Agora!
O tecladista, sabendo que não tinha como argumentar, com uma mão tentou estancar o novo sangramento em seu ombro esquerdo com a mão direita e com a mão esquerda apertou uma nota qualquer no teclado. Não era uma nota qualquer. Era um Lá. Bemol. Então disse, tremendo de medo:
– Pronto, está afinado.
O capataz continuou observando que todos os músicos estavam preparando seus instrumentos. Notou que o baterista estava inquieto.
– E você! Vê se mantém o ritmo desta vez! Senão vou ter que bater em você com o metrônomo até aprender!
A platéia estava intrigada com o lamentável espetáculo humano que estavam observando. Aparentavam estar indignados, mas não conseguiam parar de ver. Pessoas que estavam nos outros ambientes começaram a encher a pista de dança.
O capataz pegou o microfone:
– Gostaria de agradecer pela presença de vocês. Estes são os Escravos do Roque. E eu sou o Roque. Miguel Roque dos Anjos. Eles são meus escravos. Foi difícil fazer com que eles aprendessem a tocar. Foi muita porrada, privação de sono e fome que eles tiveram que aguentar para conseguir tocar a merda que eles tocam hoje, mas tudo o que fiz foi por vocês. Um artista, sem pessoas para apreciar sua arte, é como um escravo sem um capataz para enchê-lo de porrada.
O capataz curvou-se levemente e colocou o microfone em um suporte.
Uma chicotada na testa foi o sinal para o baterista gritar “três, quatro” e começar a sua batida. Um a um os outros instrumentos começaram - o baixo, as duas guitarras e o teclado.
O público olhava desinteressado. Afinal, a banda era mesmo medíocre e desinteressante. O capataz olhou para as pessoas com insegurança. A aprovação desses desconhecidos era muito importante para ele. Era uma validação do esforço que estava realizando. De repente, ele se virou para o guitarrista-solo, arrancou a guitarra de sua mão e, brandindo-a como se fosse um taco de beisebol, acertou o rosto do infeliz com força e fúria.
– Você errou o solo! Animal, estúpido! Você quer estragar tudo?
O guitarrista caiu no solo inconsciente. O baixista teve que se equilibrar para não ser arrastado junto por suas correntes. A audiência olhava com desaprovação, enquanto o capataz pedia desculpas por aquele papelão.
Uma nova chicotada, desta vez na orelha, foi o sinal para o baterista gritar “três, quatro” e começar sua batida. Um a um os outros instrumentos começaram – o baixo, uma guitarra e o teclado.
A melodia não era algo a com que os frequentadores daquela casa noturna estivessem acostumados. Em vez do rock clássico que sempre tocava naquele lugar, a melodia parecia uma abertura sertaneja, com toques de fado. Enquanto o capataz via os rostos insatisfeitos do público, ele pensava em como era fugaz a atenção das pessoas. Seu pensamento foi apenas interrompido quando sentiu um batimento vindo das caixas de som. A leitora com certeza se lembra de suas aulas de física, onde aprendeu que duas ondas sonoras, com frequências ligeiramente diferentes, ao se combinarem geram uma terceira onda sonora onde a envoltória é modulada por uma frequência correspondente à diferença das frequências das duas ondas. Básico. Enfim, se é ouvido um batimento nas caixas de som só há uma explicação possível.
– Ah é? Assim que um teclado não desafina? Porque é “eletrônico”?
Ao dizer isto o capataz pegou o suporte do microfone e, empunhando-o como se fosse ou um taco de sinuca, acertou a cabeça do pobre tecladista como se esta fosse… uma bola de sinuca. Que apropriado!
O baterista e o guitarrista-base quase foram ao chão quando o tecladista caiu inconsciente. O baixista já estava preparado, por isso estava se segurando em uma das colunas do palco.
Mais uma chicotada, desta vez na garganta, foi o sinal para o baterista gritar “três, quatro” e começar sua batida. Um a um os outros instrumentos começaram – o baixo e a guitarra.
O capataz tentou ler as expressões das pessoas que assistiam. A apresentação não estava indo como ele esperava, como ele havia antecipado em seus sonhos, em cada momento acordado no qual sua atenção desviava da sua outra ocupação.
O baterista, o baixista e o guitarrista estavam tocando lentamente, mas sem errar. O momento estava chegando. O capataz segurou o microfone com força e fechou os olhos.
Começou a cantar. De sua boca não saía música. Saía o sopro dos anjos, saía o canto dos pássaros, saía a voz mais pura, bela e delicada que qualquer um presente já tinha ouvido. A potência, o virtuosismo daquelas cordas vocais que moldavam as ondas de pressão em senoides absolutamente perfeitas atingiram o público com a sutileza de um piano em queda livre carregado de escorpiões. As pessoas observavam boquiabertas a aquela demonstração, alguns deles achando que tamanha perfeição só poderia significar o prenúncio da volta dos Deuses e do fim da existência como a conhecemos. Escutar aquilo era ao mesmo tempo assustador e tranquilizante, surpreendente e familiar, belo e complexo.
A voz maravilhosa do capataz conseguiu tornar a canção sertaneja universitária de merda que cantava em uma obra sublime. Quando terminou, foi ovacionado por vinte minutos por todos os presentes. O capataz recebeu o amor de seus fãs com os olhos fechados e os braços cruzados sobre o peito.
Enfim chegou à conclusão que se não saísse dali seus fãs não conseguiriam parar de aplaudi-lo por horas, sobre o que ele estava certo, então decidiu que era injusto fazê-los sofrer tanto e decidiu sair do palco. Antes disso, distribuiu mais algumas chicotadas nos membros da banda que sobraram enquanto os mandava carregarem os malditos guitarrista e tecladista que quase destruíram sua apresentação.
O capataz saiu do palco sob uma chuva de palmas, afastando com delicadeza uma fã que subiu ao palco e insistia em tentar beijá-lo a qualquer custo. Seus escravos, apesar dos ferimentos, caminhavam felizes. Afinal, não era possível deixar de ser tocado pela sensibilidade do capataz quando cantava com o coração.