Relatórios Mortais
Originalmente publicado em 2014-06-14 00:26 no blog Patinete a vela.
Quando Luiz chegou ao seu escritório e fez login em seu computador nada parecia fora do normal. Até que, em vez de aparecer uma bela Ferrari amarela em seu fundo de tela, um vídeo começou a ser reproduzido em seu monitor. Uma pessoa com cabelo preto liso apareceu de costas no vídeo mas, ao virar-se para ficar de frente para a câmera, foi possível ver que não era um ser humano e sim um boneco de ventríloquo muito feio, com o rosto branco, um nariz enorme e espirais vermelhas ridículas nas maçãs do rosto. Uma voz sinistra, que Luiz imediatamente reconheceu como sendo a de seu gerente Eduardo fazendo voz grossa, começou a falar:
– Você quer jogar um jogo?
– Ai caralho, de novo não, pensou Luiz.
– Você vive uma vida de procrastinação – continuou a gravação. – É muito preguiçoso para encontrar um objetivo que realmente te motive. Está preso a um trabalho de que não gosta e prefere atrasar todas suas entregas. Você acha que é muito esperto, mas agora você vai ter a chance de mudar sua forma de pensar – o boneco falava mas não havia qualquer tipo de sincronização de sua boca com a voz. Era como se o vídeo tivesse sido copiado de outro lugar.
Luiz colocou suas mãos sobre o teclado, mas só depois de ouvir um clique ele percebeu que havia dois grilhões embaixo de sua cadeira que se fecharam em volta de seus tornozelos. Luiz olhou em volta, procurando qual seria a surpresa da vez. Olhou para cima e viu um enorme machado medieval pairando sobre sua cabeça. A haste estava presa em uma engrenagem no teto e a cabeça do machado estava levantada. Na parede à frente, pouco abaixo do machado, havia um relógio digital fazendo contagem regressiva. Nesse momento estava marcando seis horas e quarenta e cinco minutos.
– O relógio à sua frente começou a contagem regressiva quando você passou o cartão no codin da entrada. Quando chegar a zero, começará a contagem de horas extras. Só que quando chegar a zero, o enorme machado de guerra que está sobre sua cabeça será solto e sua cabeça será partida em duas metades.
Nesse momento Luiz pensou que talvez tivesse sido melhor se ele não tivesse passado uma hora conversando com seus colegas de trabalho na frente do bebedouro sobre o jogo de ontem. Luiz também percebeu que o ambiente parecia estar ficando mais quente. Pensou se seria problema de ar-condicionado.
– Além disso, no assento de sua cadeira há um aquecedor que irá aumentar a temperatura gradualmente até atingir 250 graus Celsius. Serpentes venenosas serão soltas em seu cubículo para impedir que você saia da cadeira, caso os grilhões não sejam suficientes é claro. A única forma de desativar o mecanismo que controla o machado de guerra e o aquecedor é se você concluir o relatório de Melhoria Contínua até o final do expediente, com aprovação de dois revisores.
Luiz estava cansado daquela merda. Toda semana era a mesma coisa. Um dia ele teve que fazer um planejamento detalhado no Project que ele sabia que seria ignorado completamente assim que terminado. Seu gerente havia enchido seu cubículo até a cintura com água e havia preparado um mecanismo que jogava uma piranha na água a cada meia hora. Luiz conseguiu terminar o planejamento, mas quase perdeu dois dedos. No outro dia ele teve que fazer uma apresentação para a equipe sobre “Inovação” e o gerente havia saturado o ar do seu cubículo com um gás venenoso. O antídoto estava em uma pequena ampola dentro de uma caixa de vidro e ao lado da ampola havia um pequeno pistão hidráulico que destruiria o antídoto caso a apresentação não fosse concluída no horário de expediente.
Luiz escreveu algumas palavras do relatório e pegou o telefone.
– Marcos, tudo bem?
– Ah, Luiz, bom dia. Tá mais ou menos, o Eduardo me passou mais uma Meta Desafiadora dele. Se eu não terminar de preencher a planilha de apontamento de horas da equipe até a hora do almoço um fio de aço que está enrolado no meu pescoço vai ser puxado até arrancar a minha cabeça.
– Você acha que consegue revisar meu relatório quando terminar a planilha? Não pode demorar muito porque minha cadeira já está ficando meio quente…
– Pode até ser, mas você paga a cerveja.
Luiz se despediu do Marcos e ligou para a Sílvia.
– Oi Sílvia.
– Oi Luiz, agora não é uma boa hora para falar.
– O que aconteceu?
– O Dudu passou uma merda desafiadora e tenho que terminar até o final do dia, senão um bécker com ácido vai ser arremessado contra meu rosto. Fiz o peeling nessa semana e não quero estragar.
– Só preciso que você revise meu relatório…
– Não vai dar. Peça para o Paulo.
– Não dá, o Paulo não conseguiu fazer o relatório de patentes na semana passada e foi esmagado por um piano cheio de escorpiões.
– E o Marquinhos?
– Já pedi, mas preciso de mais um.
– Não posso fazer nada, arranja outra pessoa.
Luiz perdeu mais uma hora até encontrar mais uma pessoa disposta a revisar o relatório dele. O Joaquim, por não ter conseguido entregar a tempo a prestação de contas da última missão no exterior que havia feito pela empresa, havia acabado de perder sua perna esquerda, arrancada por uma armadilha de urso.
– Ainda me resta a outra e tenho ainda algumas horas para ajudar um amigo. – disse ele quando Luiz telefonou.
A cadeira do Luiz já estava bem quente e ele mal havia passado do título em seu relatório. Ele pensou que era a última vez que aceitaria essa situação e que, assim que terminasse o relatório, iria pedir transferência para outra área.
Faltando meia hora para acabar o expediente, Luiz passou o relatório para o Marcos e para o Joaquim, que aprovaram sem ler. O relatório era inútil e nem o Eduardo lia. Era por isso que o Luiz sempre enchia seu relatório com textos que ele baixava da internet. Às vezes usava receitas, outras vezes usava trechos de livros clássicos, outras vezes usava letras de músicas.
A contagem do relógio atingiu o zero poucos segundos depois de que o relatório foi marcado como Aprovado no portal de relatórios da empresa. Nesse momento a cadeira começou a esfriar e as serpentes venenosas escaparam por uma pequena portinhola que se abriu na lateral do cubículo. O machado continuou lá, ameaçador, mas não se mexeu. Quando os grilhões se abriram e soltaram suas pernas, Luiz se levantou, se alongou e andou em direção ao escritório da Karina, a funcionária do RH dedicada do setor dele. Quando chegou a porta dela estava fechada e era possível ouvir o barulho de vidro quebrando do outro lado. Luiz bateu e, após alguns segundos, a porta se abriu. A Karina estava toda ensanguentada, com cacos de vidro fincados em todo seu corpo.
– Oi Luiz, eu estava terminando de fazer uma visibilidade mensal da curva de carga para o Eduardo mas acho que estourei um pouco o prazo. No que posso te ajudar?
– Karina, não aguento mais essas técnicas motivacionais do Eduardo. Quero mudar de área.
– Por que, Luiz? A nossa área tem os melhores indicadores de aprovação de relatórios da empresa! O que te deixa assim tão insatisfeito?
– Eu até aguento os machados, as piranhas, os gases tóxicos, as serpentes. Mas o cara fica o tempo todo mexendo no meu fundo de tela, e aqueles vídeos que ele coloca são uma porcaria. Você tem que me mandar para outra área, pelamordedeus.
– Mas você sabe que nos próximos meses todas as áreas vão adotar o programa motivacional Kutusoff, então nem adianta muito mudar de área!
Luiz saiu da sala da Karina sabendo que só havia uma coisa que poderia ser feita. No estacionamento, ele ficou esperando pelo Eduardo em seu carro. Quando ele chegou, Luiz perguntou:
– Você quer jogar um jogo?
E quebrou a cara do Eduardo com seu pé de cabra.